segunda-feira, 31 de outubro de 2011

E vocês? Vocês, nunca!



Em 1927, da distante Birmânia (hoje Mianmar) o bem-aventurado padre Clemente Vismara brindou seus jovens leitores e amigos ocidentais com o texto abaixo, inspiradamente desafiador. Uma experiência desfrutada apenas por um missionário.
"A noite escura tudo enluta, tudo igua­la. Na mata cerrada, sem fim, com os meus pequenos, faço reviver uma festa de infância, quando Papai Noel enchia de doces as meias e, em meio à expec­tativa geral, acendo uma das cem cepas de bambu, extirpadas para dar lugar ao orfanato. Num instante, uma labareda, que a tudo dá vida e a todos alegra, cre­pitante, uivando, toca o céu. E vocês? Vocês, nunca!
Não posso dormir; o encanto da nature­za me arrebata. O céu me sorri, as estre­las me piscam, a lua me dá luz, o rio, na areia do qual estou sentado, me fala, a árvore que me protege gesticula, a brisa me acaricia. Viva o missionário, o rei da floresta!
Amarrando as sandálias, esticando os membros, sem camisa, corro ao riacho e, na água virgem, lavo meu rosto, onde os peixinhos perseguem as bolhas de sabão que fogem, levadas pela corrente. E vocês? Vocês, nunca!
Sozinho na minha cabana, rezo o rosário, enquanto o meu gatinho, com suas pati­nhas, gentilmente puxa o terço, como se quisesse unir-se a mim para louvar a Mãe. E vocês? Vocês, nunca!
No meio de uma multidão de curiosos, com minha pinça, arranco um dente e o entrego ao paciente, entre aclamações gerais.
Com a boina debaixo do braço, ao pôr do sol, entro numa aldeia da montanha. Num instante, torno-me o senhor do lu­gar, pois todos correm quando aparece a minha longa barba. E vocês? Vocês, nunca!
Faminto e sozinho pelo caminho perdi­do, corto com o facão um grosso bambu e dele faço uma panela. Com outro, faço uma peneira. Recolho gravetos secos e acendo o fogo. Tiro água do riacho e c loco os aspargos e os grossos brotos do bambu nascente para nadar... E vocês? Vocês, nunca!
O tempo se enfurece e não dá para escapar. Quatro facadas. Com grossas bananeiras e com suas longas, largas e resitentes folhas, em cima de quatro bambus entrecruzados, construo a minha casa: Sou mais feliz do que o caracol! E vocês? Vocês, nunca!
De uma fenda na parede da cabana, aponto a espingarda, derrubo um javali... e garanto a refeição. E vocês? Vocês, nunca!

Sentado num tronco queimado,  à noite avançada, perdido numa garganta da selva, molestado por pernilongos, catequizo cinco famílias de ladrões de marca maior... E vocês? Vocês, nunca!
Meu travesseiro é de penas de aves, meu tapete é a pele de um veado, meu cabide fiz com os chifres de um cervo, todos vítimas da minha espingarda.E vocês? Vocês, nunca!
Aqui em Monglin, vivo sem casa; des­perto sem despertador; lavo-me sem bacia; rezo sem igreja; como sem toalha; caço sem licença; viajo sem dinheiro; engano sem culpa; traba­lho sem descanso; estou alegre sem teatro; passeio sem sapatos; estudo línguas sem parar; não passo um dia sem aborrecimentos; vivo sem ami­gos; dou de comer a quarenta crian­ças todos os dias; envelheço sem perceber e, com certeza, vou morrer sem remorsos, porque  homem alegre o Céu o ajuda.  E vocês? Vocês, assim? Nunca, se não vierem, e logo, para serem meus companheiros!"

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