Em
1927, da distante Birmânia (hoje Mianmar) o
bem-aventurado padre Clemente Vismara brindou seus jovens leitores e amigos ocidentais com o
texto abaixo, inspiradamente desafiador. Uma
experiência desfrutada apenas por um missionário.
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"A noite escura tudo enluta, tudo iguala. Na mata cerrada, sem fim, com
os meus pequenos, faço reviver uma festa de infância, quando Papai Noel enchia de doces as meias e, em meio à expectativa
geral, acendo uma das cem cepas de bambu, extirpadas para dar lugar ao
orfanato. Num instante, uma labareda, que a tudo dá vida e a todos alegra, crepitante, uivando, toca o céu. E vocês? Vocês, nunca!
Não posso dormir; o
encanto da natureza me arrebata. O céu me sorri, as estrelas me piscam, a lua
me dá luz, o rio, na areia do qual estou sentado, me fala, a árvore que me
protege gesticula, a brisa me acaricia. Viva o missionário, o rei da floresta!
Amarrando as sandálias, esticando os membros,
sem camisa, corro ao riacho e, na água virgem, lavo meu rosto, onde os
peixinhos perseguem as bolhas de sabão que fogem, levadas pela corrente. E vocês? Vocês, nunca!
Sozinho na minha cabana, rezo o rosário, enquanto o meu gatinho, com
suas patinhas, gentilmente puxa o terço, como se quisesse unir-se a mim para
louvar a Mãe. E vocês?
Vocês, nunca!
No
meio de uma multidão de curiosos, com minha pinça, arranco um dente e o entrego
ao paciente, entre aclamações gerais.
Com a boina debaixo do braço, ao pôr do sol,
entro numa aldeia da montanha. Num instante, torno-me o senhor do lugar, pois
todos correm quando aparece a minha longa barba. E vocês? Vocês, nunca!
Faminto
e sozinho pelo caminho perdido, corto com o facão um grosso bambu e dele faço
uma panela. Com outro, faço uma peneira. Recolho gravetos secos e acendo o fogo. Tiro água do riacho e c loco
os aspargos e os grossos brotos do bambu nascente para nadar... E
vocês? Vocês, nunca!
O
tempo se enfurece e não dá para escapar. Quatro facadas. Com grossas bananeiras e com suas longas, largas e resitentes
folhas, em cima de quatro bambus entrecruzados, construo
a minha casa: Sou mais feliz do que o caracol! E
vocês? Vocês, nunca!
De uma fenda na parede da cabana, aponto a espingarda, derrubo um javali... e garanto a refeição. E vocês? Vocês, nunca!
Sentado num tronco queimado, à noite avançada, perdido numa
garganta da selva, molestado por pernilongos, catequizo
cinco famílias de ladrões de marca maior... E
vocês? Vocês, nunca!
Meu travesseiro é de penas de aves, meu tapete é
a pele de um veado, meu cabide fiz com os chifres de um cervo, todos vítimas da minha espingarda.E vocês? Vocês,
nunca!
Aqui
em Monglin, vivo sem casa; desperto sem despertador; lavo-me sem bacia; rezo
sem igreja; como sem toalha; caço sem licença; viajo sem dinheiro; engano sem
culpa; trabalho sem descanso; estou alegre sem teatro; passeio sem sapatos;
estudo línguas sem parar; não passo um dia sem aborrecimentos; vivo sem amigos;
dou de comer a quarenta crianças todos os dias; envelheço sem perceber e, com
certeza, vou morrer sem remorsos, porque homem alegre o Céu o ajuda. E
vocês? Vocês, assim? Nunca, se não vierem, e logo, para serem meus
companheiros!"