Conta-se
que alguns milênios atrás, quando o gelo cobria grande parte do globo
terrestre, muitos animais desapareceram porque não resistiram ao intenso frio.
Uma manada de porcos-espinhos, procurando sobreviver, passou a morar em uma
caverna. Para se proteger do pesado frio, encostavam-se uns nos outros. Cada
um, assim, esquentava-se com o calor dos demais. O tempo foi passando e a
manada cresceu. Sendo agora mais numerosos, tinham melhores condições de
enfrentar aqueles animais que eram mais ferozes e fortes, e dos quais antes
fugiam. Cada novo inverno os encontrava mais unidos, mais protegidos e
resistentes. De repente, porém, passaram a se esquecer da proteção e do calor
que recebiam dos outros. Começaram a reclamar dos espinhos dos companheiros e das
feridas que nasciam pelo fato de viverem tão próximos. Esqueceram-se do rigor
do inverno e se separaram. De início, sentiram uma agradável sensação de
liberdade e de alívio: não precisavam mais ter de suportar os dolorosos
espinhos dos companheiros. Estavam livres dos sofrimentos! Mas a sensação de
liberdade não durou muito: isolados, passaram a morrer congelados. Seu número
diminuía continuamente. Alguns sobreviventes perceberam que também morreriam se
não voltassem a se proteger mutuamente. Então, quando começou um novo inverno,
dirigiram-se à antiga caverna. Procuraram, novamente, ficar perto dos demais,
mas só o suficiente para se esquentar. Lembrados dos espinhos que cada um
tinha, evitavam aproximações que pudessem causar novos sofrimentos. Descobriram
que a convivência impunha-lhes limitações e dificuldades, mas somente dessa
maneira tinham condições de sobreviver. Puderam, dessa maneira, atravessar a
era glacial, enquanto que outras espécies de animais desapareceram, por causa
do frio.
Viver
é conviver. Temos o dom de nos acostumar com os nossos próprios defeitos e
manias. Julgamos até que eles são verdadeiras virtudes – daí nossa reação,
interna ou externa, quando alguém ousa nos criticar. Achamos que os outros,
sim, é que tem comportamentos insuportáveis; são chatos, desagradáveis e não
percebem os aborrecimentos que nos causam. Por que não mudam de comportamento?
Por que não se esforçam para serem melhores? Por que temos de suportá-los?
Se
tivéssemos a coragem de promover uma grande reunião com todas as pessoas que
convivem conosco, e lhes pedíssemos que apontassem nossos defeitos, talvez a
reunião terminasse de maneira trágica: riscaríamos esses amigos e conhecidos de
nossa agenda. “Afinal, onde já se viu dizer aquilo tudo de mim? E eu que pensava
que fossem meus amigos!...”
Quem
somos? O que pensamos ser ou o que os outros pensam de nós? Somos o que
pensamos ser; somos o que os outros pensam de nós; mas somos, acima de tudo, o
que Deus pensa de nós. Só Ele tem uma visão global a nosso respeito. É o único
que nunca se decepciona conosco. É que uma decepção tem como origem determinada
expectativa não realizada. Ora, Ele sabe que somos pó, frágeis e fracos. Nós é
que nos julgamos muito sábios e santos. Os outros talvez reajam contra nós
porque sentem nossos “espinhos”. (Na verdade, para um porco-espinho, os
próprios espinhos não incomodam; desagradáveis são os espinhos dos
companheiros...).
Viver
é conviver. É mais do que isso: é crescer nos relacionamentos. E cresceremos se
nossos relacionamentos forem marcados pelo amor. O amor cristão (“Amai-vos uns
aos outros como eu vos amei” – Jesus Cristo) não se fundamenta nas virtudes dos
outros, em sua bondade, delicadeza ou simpatia. A fonte desse amor é a
gratuidade. Somos chamados a amar o próximo não porque ele seja bom; devemos
amá-lo para que se torne bom e, acima de tudo, porque é uma imagem e semelhança
de Deus. Talvez, em algumas pessoas, essa imagem não esteja muito nítida;
poderá, até, estar deformada e feia. Não nos cabe julgar as razões disso e menos
direito temos de condená-las. Amar é olhar cada pessoa com o olhar de Jesus
Cristo - um olhar que é marcado pela misericórdia e pelo perdão, pelo carinho e
pela a capacidade de fazer nosso o sofrimento do outro.
Dom Murilo S.R. Krieger, scj
Arcebispo de São Salvador da Bahia - BA
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